sexta-feira, 19 de outubro de 2012

catequese com o Papa




Queridos irmãos e irmãs,
Hoje gostaria de falar de um notável pensador do ocidente cristão: São João Escoto Eriúgena, cujas origens são obscuras. Veio certamente da Irlanda, onde nasceu nos inícios de 800, mas não sabemos quando deixou sua Ilha para atravessar a Manica e entrar assim a fazer parte plenamente daquele mundo cultural que estava renascendo ao redor dos Carolíngios, e especialmente em volta de Carlos o Calvo, na França do IX século. Como não se conhece a data certa de seu nascimento, assim ignoramos também o ano de sua morte que, segundo estudiosos, deveria em todo caso, ser por volta do ano 870.

João Escoto Eriúgena tinha uma cultura patrística, tanto grega como latina, de primeira mão: conhecia, de fato, diretamente os escritos dos padres latinos e gregos. Conhecia bem, além do mais, as obras de Agostinho, Ambrósio, Gregório magno, grandes padres do ocidente cristão, mas conhecia também o pensamento de Orígenes, Gregório Magno, grandes Padres do Oriente, não menores. 

Era um homem excepcional, que dominava naquele tempo também a língua grega. Demonstrou uma atenção particularíssima por São Máximo o Confessor, e principalmente, por Dionísio o Areopagita. Sob este pseudônimo se esconde um escritor eclesiástico do V século, da Síria, mas toda a Idade Média e também João Escoto Eriúgena, era convicto que este autor fosse idêntico a um discípulo dirigido por São Paulo, do qual se fala nos Atos dos Apóstolos (17,34). 

Escoto Eriúgena, convicto desta apostolicidade dos escritos de Dionísio, o qualificava “autor divino” por excelência; os escritos dele foram por isso uma fonte eminente de seu pensamento. João Escoto traduziu em latim suas obras. Os grandes teólogos medievais, como são Boaventura, conheceram as obras de Dionísio através desta tradução. Se dedicou por toda a vida a aprofundar e desenvolver seu pensamento, atingindo estes escritos, ao ponto que ainda hoje algumas vezes pode ser árduo distinguir onde é o pensamento de Escoto Eriúgena e onde ele só quis reproduzir o pensamento do Pseudo Dionísio.

Na verdade, o trabalho teológico de João Escoto não teve muita sorte. Não só no fim da era carolíngia fez esquecer suas obras; também uma censura da parte da Autoridade eclesiástica lançou uma sombra sobre sua figura. Na realidade, João Escoto representa um platonismo radical, que algumas vezes parece aproximar-se a uma visão panteística, apesar de suas intenções pessoais subjetivas terem sido sempre ortodoxas. 

De João Escoto Eriúgena temos acesso a algumas obras, entre as quais merecem ser recordadas, especialmente, o tratado “Sobre divisão da natureza” e as “Exposições sobre a hierarquia celeste de são Dionísio”. Ele desenvolve estimulantes reflexões teológicas e espirituais, que poderiam sugerir interessantes aprofundamentos também aos teólogos contemporâneos. Me refiro, por exemplo, ao que ele escreve sobre onde exercitar um discernimento apropriado sobre o que vem apresentado como auctoritas vera, ou sobre o empenho de continuar a buscar a verdade até que não se consiga alcança-la na experiência da adoração silenciosa de Deus.

Nosso autor diz: "Salus nostra ex fide inchoat: nossa salvação começa com a fé". Não podemos falar de Deus partindo das nossas invenções, mas daquilo que Deus diz se si mesmo nas Sagradas Escrituras. Porque Deus diz só a verdade, Escoto Eriúgena é convicto que a autoridade e a razão não podem jamais estarem em contraste uma com outra; é convicto que a verdadeira religião e a verdadeira filosofia coincidem. Neste perspectiva escreve: "Qualquer tipo de autoridade que não seja confirmada de uma verdadeira razão deveria ser considerada frágil... Não é de fato, verdadeira autoridade senão aquela que coincide com a verdade descoberta na força da razão, mesmo se tivesse que tratar de uma autoridade recomendada e transmitida pela utilidade dos sucessores dos Santos Padres” (I, PL 122, col 513BC). 

Consequentemente, ele adverte: “Nenhuma autoridade te intimide ou te distraia a ponto de fazer-te compreender a persuasão obtida graças a uma reta contemplação racional. De fato, a autêntica autoridade não contradiz jamais a reta razão, nem esta última pode jamais contradizer uma verdadeira autoridade. Uma e outra provem sem qualquer dúvida da mesma fonte, que é sabedoria divina” (I, PL 122, col 511B). Vemos aqui uma corajosa afirmação do valor da razão, fundamentada sobre a certeza que a autoridade verdadeira é racional, porque Deus é a razão criadora.

A própria Escritura não foge, segundo Eriúgena, da necessidade de aproximar-se utilizando o mesmo critério de discernimento. A Escritura de fato – sustenta o teólogo irlandês repropondo uma reflexão já presente em João Crisóstomo – apesar de provir de Deus, não seria necessária se o homem não tivesse pecado. 

Deve-se deduzir que a Escritura foi dada por Deus com uma intenção pedagógica e por condescendência, para que o homem pudesse recordar tudo o que lhe havia sido impresso no coracao desde o momento da sua criação “a imagem e semelhança de Deus” (cfr Gn 1,26) e que a queda original lhe havia feito esqueceer. Escreve Eriúgena nas Expositiones: “Não é o homem que foi criado para a Escritura, da qual não teria tido necessidade se não tivesse pecado, mas é a Escritura – feita de doutrina e símbolos – que foi dada ao homem. 

Graças a ela, de fato, nossa natureza racional pode ser introduzida nos segredos da autêntica pura contemplação de Deus”  (II, PL 122, col 146C). A palavra da Sagrada Escritura purifica nossa razão um pouco cega e nos ajuda a retornar a recordação daquilo que nós, enquanto imagem de Deus, trazemos em nosso coração, vulnerado infelizmente pelo pecado.

Derivam daqui algumas consequências hermenêuticas, a respeito do modo de interpretar a Escritura, que podem indicar ainda hoje o caminho certo para uma correta leitura da Sagrada Escritura. Trata-se de descobrir o sentido escondido no texto sagrado e isso supõe um particular exercício interior graças a qual a razão se abre ao caminho seguro rumo a verdade. 

Tal exercício consiste no cultivar uma constante disponibilidade à conversão. Para alcançar de fato, a visão em profundidade do texto é necessário progredir simultaneamente na conversão do coração e na análise conceitual da página bíblica seja essa de caráter cósmico, histórico ou doutrinal. É, de fato, só graças à constante purificação seja do olho do coração ou do olho da mente que pode-se conquistar a exata compreensão.

Este caminho intransitável, exigente e entusiasmador, feito de contínuas conquistas e relativizações do saber humano, conduz a criatura inteligente até as portas do Mistério divino, onde todas as noções acusam a própria fragilidade e incapacidade e impôe, por isso, com a simples força livre e doce da verdade, ir sempre além de tudo isso que é continuamente adquirido. 

O reconhecimento adorante e silencioso do Mistério, que desemboca na comunhão unificante, se revela por isso como a única estrada de uma relação com a verdade que seja também a mais íntima possível e a mais escrupulosamente respeitosa da alteridade. João Escoto – utilizando também nisso um vocabulário caro à tradição cristã de língua grega – chamou esta experiência a qual tendemos “theosis” ou divinização, com afirmações ousadas ao ponto que foi possível suspeitá-lo de panteísmo heterodoxo. 

Permanece forte, em todo caso a emoçao diante de textos como o seguinte onde – recorrendo à antiga metáfora da fusão de ferro – escreve: “Portanto, como todo o ferro que ao ser aquecido virá líquido ao ponto de parecer ser somente fogo, mas permanecem distintas as substâncias de um e de outro, assim deve-se aceitar que depois do fim deste mundo toda a natureza seja a corpórea ou a incorpórea, manifeste somente Deus e todavia permaneça íntegra de tal maneira que Deus possa ser de certa maneira compreendido mesmo permanecendo incompreensível e a própria criatura seja transformada, com maravilha inefável, em Deus” (V, PL 122, col 451B).

Na realidade, todo o pensamento teológico de João Escoto é a demonstração mais evidente da tentativa de expressar o dizível e o indizível Deus, fundamentando-se unicamente sobre o mistério do Verbo feito carne em Jesus de Nazaré. As tantas metáforas por ele utilizadas para indicar esta realidade inefável demonstram quanto ele seja consciente da absoluta inadequação dos termos com quais nós falamos destas coisas. E todavia, permanece o encanto e a atmosfera de autêntica experiência mística que se pode tocar concretamente em seus textos. 

Basta citar, como prova disso, uma página do De divisione naturae que toca em profundidade a nossa alma de crentes de século 21: “Não se deve desejar outra coisa – ele escreve – que não seja a alegria da verdade que é Cristo, nem evitar senao a ausência d'Ele. Esta de fato, se deveria considerar causa única de total e eterna tristeza.Tira-me Cristo e não me permanecerá nenhum bem nem nada que me aterrorize como sua ausência. Os maiores tormentos de uma criatura racional são a privação e a ausência d'Ele (V, PL 122, col 989a). Palavras que podemos fazer nossas, traduzindo-as em oração àquele que constitui o desejo também de nosso coração.

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